Este sermão (alegórico) foi pregado três dias antes de Padre António Vieira embarcar ocultamente (a furto) para Portugal, para obter uma legislação justa para os índios.
O Sermão de Santo António aos Peixes constitui um documento da surpreendente imaginação, habilidade oratória e poder satírico do Pe. António Vieira.
Todo o sermão é uma alegoria, porque os peixes são a materialização dos vícios dos homens.
Estrutura do Sermão:
Estrutura Externa – a obra está estruturada em seis capítulos.
Estrutura Interna – Apresenta uma estrutura tripartida:
a) Exórdio (Cap. I)– onde é feita uma referência sumária do assunto que
se vai tratar; (conceito predicável)
b) Exposição/Confirmação (Cap. II até V)– constitui o corpo da obra e
engloba quatro capítulos.
Na exposição, o autor faz referência às obrigações do sal, indica as
virtudes/louvores em geral dos peixes e apresenta uma crítica aos
Homens;
Na confirmação analisa os louvores em particular e começa as
repreensões: censura a prepotência dos colonos, critica a vaidade, os
parasitas, os ambiciosos, os hipócritas e os traidores;
c) Peroração (Cap. VI)– constitui a parte final do discurso. Aqui, o autor
faz uma conclusão, apresentando uma síntese dos melhores
argumentos usados na segunda parte.
O orador deverá cumprir as regras da eloquência:
docere, isto é, ensinar, explicando e expondo argumentos;
delectare, isto é, agradar, deleitar, captando o agrado e a atenção do auditório, de modo a não causar aborrecimento;
movere, isto é, comover, apelando às emoções e tentando "tocar" os sentimentos do auditório.
Exórdio - Capítulo 1
Neste primeiro capítulo, mais conhecido por exórdio (a introdução), o Padre António Vieira expõe o tema e as questões centrais que vai defender, bem como o plano estrutural do seu sermão.
Vieira, a partir do conceito predicável “Vós sois o sal da terra”, em analogia com “Santo António [que] foi sal da terra e foi sal do mar”, visa criticar a humanidade que está cada vez mais corrupta. Quando ele sugere que a culpa se encontra no sal refere-se aos pregadores que proferem uma coisa e depois agem de outra forma, ou então afirma que a culpa se encontra na terra, referindo-se assim aos ouvintes uma vez que estes não ligam às palavras da verdadeira doutrina.
Capítulo II – Louvor das virtudes dos peixes, em geral
Neste capítulo serão criticados os homens por analogia com os peixes, como está expresso nesta passagem irónica: “Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam”. Vieira deixa bem claro que este sermão é uma alegoria, referindo-se frequentemente aos homens. Os peixes ora serão, metaforicamente, os índios ora os colonos.
Neste capítulo, pois, o pregador pretende repreender os vícios dos homens, opostos às virtudes dos peixes.
Louvores em Geral
• São obedientes (obediência), ouvem e não falam
"aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor"
"ouvem e não falam"
• Foram os primeiros animais a serem criados
"vós fostes os primeiros que Deus criou"
• São os mais numerosos e os mais volumosos
"entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais e os maiores"
• Não são domesticáveis.
"só eles entre todos os animais não se domam nem domesticam"
Capítulo III – Louvor das virtudes dos peixes, em particular
No capítulo III (considerado o 1º momento da confirmação), Vieira continua a elogiar os peixes, mas desta vez os seus louvores aos peixes são individualizados, visam peixes em particular.
Vieira utiliza quatro tipo de peixes para comprovar a relação entre o homem e o divino.
O Santo Peixe de Tobias, peixe bíblico, grande em tamanho, possui nas suas entranhas um fel que cura da cegueira e um coração que expulsa os demónios («o fel era bom para curar da cegueira», «o coração para lançar fora os demónios» ); representa as virtudes interiores, a bondade, e o poder purificador da palavra de Deus. Crítica aos homens- critica a cegueira de quem não quer ver o mal e não se afasta deste.
A Rémora, peixe tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, quando se prende a um navio tem força razoável para a segurar ou determinar o seu rumo («se se pega ao leme de uma nau da Índia […] a prende e a amarra mais que as mesma âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante.»); expressa a força ou o poder da palavra dos pregadores: a língua de S. António era uma rémora na terra – tinha força para dominar as paixões humanas como a soberba, a vingança, a cobiça e a sensualidade (as quatro naus do sermão).
Crítica aos homens- fraqueza do ser humano na cedência às paixões que se opõem à razão, pois na apresenta a força suficiente para resistir às tentações.
O Torpedo origina descargas elétricas que acabam por fazer oscilar o braço do pecador («Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo, começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito?»); simboliza o poder da palavra de Deus, em converter, em fazer o ser humano arrepender-se.
Crítica aos homens- não lhes treme a consciência perante o mal que fazem, pois não se perturbam perante o poder da palavra de Deus.
O Quatro-olhos contém dois pares de olhos, uns para cima e outros para baixo («e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois olhos, que direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.»); simbolizam a visão, a iluminação: o cristão tem o dever de tirar os olhos da vaidade terrena, olhando para o céu, e sem esquecer o inferno.
Crítica aos homens- não pretendem distinguir o bem do mal, pois deixam-se levar pela vaidade.
Síntese
Todos estes elogios que o Padre António Vieira tece aos peixes são o contraponto dos defeitos dos homens, evidenciando assim os vícios destes. (Raciocínio por contraste)
Capítulo IV – Repreensão dos vícios dos peixes, em geral
Neste capítulo, Vieira repreende os peixes em geral, criticando neles comportamentos condenáveis nos homens. (Raciocínio por semelhança)
O pregador confirma a tese de que os homens se comem uns aos outros, dando o exemplo dos peixes.
- «[...] é que vos comedes uns aos outros.»
- «Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.»
- «Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.»
Capítulo V- Reprensão dos vícios dos peixes, em particular
De carácter particular, Padre António Vieira usa quatro exemplos de peixes que se referem a
tipos comportamentais.
O roncador que simboliza os arrogantes,
o pegador, que simboliza os oportunistas,
o voador, que simboliza os ambiciosos e o pior de todos,
o polvo, que simboliza o traidor e o hipócrita. Este último, tem uma aparência de santo e manso e um ar inofensivo, mas na essência é traiçoeiro e maldoso, é hipócrita e faz-se de amigo dos outros e no fim “abraça-os”. Neste capítulo são usados os exemplos de São Pedro, Sto Ambrósio, São Basílio e
o Gigante Golias.
Capítulo VI- Peroração
Por fim, a despedida, no capítulo VI, onde o orador retoma os pregadores de que falava no
conceito predicável, servindo-se dele próprio como exemplo alegando que não estava a
cumprir a sua função. Alega também que ele (homens) e os peixes, nunca vão chegar ao
sacrifício final, uma vez que os peixes já vão mortos e os homens vão mortos de espírito.
Padre António Vieira diz que a irracionalidade, a inconsciência e o instinto dos peixes, são
melhores do que a racionalidade, o livre arbítrio, a consciência, o entendimento e a vontade
do homem.
Conclui-se assim, fazendo um apelo aos ouvintes e louvando-se a Deus, tornando esta última
parte do sermão um pouco mais familiar, para que se estabeleça de novo a proximidade entre
os ouvintes e o orador.
Este sermão teve como ouvintes os colonos do Maranhão e tem grande coesão e coerência
textual graças à utilização de recursos estilísticos, articuladores do discurso e argumentos de
autoridade e analógicos para validar e confirmar os testemunhos narrados. Todo o sermão é
alegórico, uma vez que são utilizados os peixes como figuras concretas para a crítica aos
homens.
O sermão é,pois, todo ele feito de alegorias, simbolizando os vícios dos colonos do Brasil ("peixes grandes que comem os pequenos") em vários peixes.
O sermão, o texto de que hoje dispomos, é apenas uma das partes que compunham o espetáculo teatral da pregação, onde intervinham outras unidades significativas como o espaço cénico, a iluminação, a marcação, os gestos, as entoações. A própria arquitetura barroca adotou o modelo jesuítico de igreja-salão, sem naves laterais para que o púlpito pudesse ser visto.
O estilo de Padre António Vieira remete para uma vertente medieval que assenta na alegoria, mas também para processos concetistas que o celebraram como um tecelão barroco, cheio de perícia em desfiar os textos bíblicos, para compor um texto novo. No entanto, Padre António Vieira tece este discurso velho, moldando-o às suas ideias, brincando com as palavras.
Para esse desempenho usou:
os polissíndetos;
as comparações;
as anástrofes;
as exclamações;
os trocadilhos;
os paralelismos anafóricos;
as antíteses;
a anáfora;
as gradações;
as interrogações retóricas;
...
O Pe António Vieira é considerado o maior orador sacro português e domina todo o século XVII pela sua personalidade vigorosa que capta a atenção dos ouvintes.
Destaca-se, ainda, pela coragem evidenciada na luta, através das palavras, contra a exploração dos povos oprimidos e pelo patriotismo evidenciado na luta pela manutenção da independência nacional, numa época instável como foi a da Restauração.
É marcante, também, o seu anticonvencionalismo e ousadia ao combater a organização social e religiosa mais poderosa de Portugal – O Tribunal do Santo Ofício – cujas práticas anti-cristãs denuncia, independentemente dos perigos a que se expôs e do sofrimento que tais atitudes lhe causaram.
Razão do título do Sermão de Sto António aos Peixes:
O sermão inspira-se na lenda medieval segundo a qual Santo António, numa das pregações destinadas a emendar o comportamento dos homens, decide falar aos peixes ao constatar que os homens não lhe prestam atenção. Compreensivos e atentos, os peixes levantam as cabeças à superfície das águas, comprovando a força da palavra do santo.
António Vieira imitá-lo-á visto que também não é ouvido pelos colonos do Maranhão que exploram os ameríndios e os escravos negros; à semelhança do santo que tanto venera, falará aos “peixes” – alegoria dos colonos. Deste modo pode criticá-los sem temer represálias.
Funções do sermão:
O sermão tem uma missão social (salvar os ameríndios da cobiça e exploração);
é também um instrumento de intervenção na vida política do país;
tem também uma missão espiritual: divulgar a palavra de Cristo, o Evangelho e histórias de santos como exemplos de condutas a imitar.
Intencionalidade comunicativa do pregador:
O sermão é um texto que pretende:
a) ensinar através do recurso a citações bíblicas, dados da História natural, exemplos da sabedoria popular. Tem, portanto, uma função informativa (informa sobre diversos saberes)
b) agradar aos ouvintes através do recurso a frases exclamativas, interrogações retóricas, gradações, apóstrofes, alegorias. Tem uma função emotiva (desperta emoções nos ouvintes)
c) Persuadir os ouvintes através da argumentação por meio do confronto com a Bíblia, emprego do modo imperativo, do vocativo e interrogações retóricas. Tem uma função apelativa (interpela os ouvintes, obrigando-os a reflectir no que é dito)
d) intervir na sociedade portuguesa da sua época.