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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Sermão de Santo António aos Peixes

O Sermão de Santo António aos Peixes foi proferido na cidade de São Luís do Maranhão em 1654.

Este sermão (alegórico) foi pregado três dias antes de Padre António Vieira embarcar ocultamente (a furto) para Portugal, para obter uma legislação justa para os índios.

O Sermão de Santo António aos Peixes constitui um documento da surpreendente imaginação, habilidade oratória e poder satírico do Pe. António Vieira.

Todo o sermão é uma alegoria, porque os peixes são a personificação dos homens.

Estrutura do Sermão:

 Estrutura Externa – a obra está estruturada em seis capítulos.
 Estrutura Interna – Apresenta uma estrutura tripartida:
a) Exórdio (Cap. I)– onde é feita uma referência sumária do assunto que
se vai tratar; (conceito predicável)
b) Exposição/Confirmação (Cap. II até V)– constitui o corpo da obra e
engloba quatro capítulos.
Na exposição, o autor faz referência às obrigações do sal, indica as
virtudes/louvores em geral dos peixes e apresenta uma crítica aos
Homens;
Na confirmação analisa os louvores em particular e começa as
repreensões: censura a prepotência dos colonos, critica a vaidade, os
parasitas, os ambiciosos, os hipócritas e os traidores;
c) Peroração (Cap. VI)– constitui a parte final do discurso. Aqui, o autor
faz uma conclusão, apresentando uma síntese dos melhores
argumentos usados na segunda parte.

O orador deverá cumprir as regras da eloquência:
docere, isto é, ensinar, explicando e expondo argumentos;
delectare, isto é, agradar, deleitar, captando o agrado e a atenção do auditório, de modo a não causar aborrecimento;
movere, isto é, comover, apelando às emoções e tentando "tocar" os sentimentos do auditório.

Exórdio - Capítulo 1

Neste primeiro capítulo, mais conhecido por exórdio (a introdução), o Padre António Vieira expõe o tema e as questões centrais que vai defender, bem como o plano estrutural do seu sermão.
Vieira, a partir do conceito predicável “Vós sois o sal da terra”, em analogia com “Santo António [que] foi sal da terra e foi sal do mar”, visa criticar a humanidade que está cada vez mais corrupta. Quando ele sugere que a culpa se encontra no sal refere-se aos pregadores que proferem uma coisa e depois agem de outra forma, ou então afirma que a culpa se encontra na terra, referindo-se assim aos ouvintes uma vez que estes não ligam às palavras da verdadeira doutrina.

Capítulo II – Louvor das virtudes dos peixes, em geral
Neste capítulo serão criticados os homens por analogia com os peixes, como está expresso nesta passagem irónica: “Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam”. Vieira deixa bem claro que este sermão é uma alegoria, referindo-se frequentemente aos homens. Os peixes ora serão, metaforicamente, os índios ora os colonos.
Neste capítulo, pois, o pregador pretende repreender os vícios dos homens, opostos às virtudes dos peixes.


Louvores em Geral 
• São obedientes (obediência), ouvem e não falam
"aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor"
"ouvem e não falam"
• Foram os primeiros animais a serem criados
"vós fostes os primeiros que Deus criou"
• São os mais numerosos e os mais volumosos
"entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais e os maiores"
• Não são domesticáveis.
"só eles entre todos os animais não se domam nem domesticam"


Capítulo III – Louvor das virtudes dos peixes, em particular

No capítulo III (considerado o 1º momento da confirmação), Vieira continua a elogiar os peixes, mas desta vez os seus louvores aos peixes são individualizados, visam peixes em particular.
Vieira utiliza quatro tipo de peixes para comprovar a relação entre o homem e o divino.
O Santo Peixe de Tobias, peixe bíblico, grande em tamanho, possui nas suas entranhas um fel que cura da cegueira e um coração que expulsa os demónios («o fel era bom para curar da cegueira», «o coração para lançar fora os demónios» ); representa as virtudes interiores, a bondade, e o poder purificador da palavra de Deus.
A Rémora, peixe tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, quando se prende a um navio tem força razoável para a segurar ou determinar o seu rumo («se se pega ao leme de uma nau da Índia […] a prende e a amarra mais que as mesma âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante.»); expressa a força ou o poder da palavra dos pregadores: a língua de S. António era uma rémora na terra – tinha força para dominar as paixões humanas como a soberba, a vingança, a cobiça e a sensualidade (as quatro naus do sermão).
O Torpedo origina descargas elétricas que acabam por fazer oscilar o braço do pecador («Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo, começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito?»); simboliza o poder da palavra de Deus, em converter, em fazer o ser humano arrepender-se.
O Quatro-olhos contém dois pares de olhos, uns para cima e outros para baixo («e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois olhos, que direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.»); simbolizam a visão, a iluminação: o cristão tem o dever de tirar os olhos da vaidade terrena, olhando para o céu, e sem esquecer o inferno.

Síntese
Todos estes elogios que o Padre António Vieira tece aos peixes são o contraponto dos defeitos dos homens, evidenciando assim os vícios destes. (Raciocínio por contraste)


Capítulo IV – Repreensão dos vícios dos peixes, em geral
Neste capítulo, Vieira repreende os peixes em geral, criticando neles comportamentos condenáveis nos homens. (Raciocínio por semelhança)
O pregador confirma a tese de que os homens se comem uns aos outros, dando o exemplo dos peixes.
- «[...] é que vos comedes uns aos outros.»
- «Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.»

- «Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.»

Capítulo V- Reprensão dos vícios dos peixes, em particular

De carácter particular, Padre António Vieira usa quatro exemplos de peixes que se referem a
tipos comportamentais.

O roncador que simboliza os arrogantes,
o pegador, que simboliza os oportunistas,
o voador, que simboliza os ambiciosos e o pior de todos,
o polvo, que simboliza o traidor e o hipócrita. Este último, tem uma aparência de santo e manso e um ar inofensivo, mas na essência é traiçoeiro e maldoso, é hipócrita e faz-se de amigo dos outros e no fim “abraça-os”. Neste capítulo são usados os exemplos de São Pedro, Sto Ambrósio, São Basílio e
o Gigante Golias.

Capítulo VI- Peroração

Por fim, a despedida, no capítulo VI, onde o orador retoma os pregadores de que falava no
conceito predicável, servindo-se dele próprio como exemplo alegando que não estava a
cumprir a sua função. Alega também que ele (homens) e os peixes, nunca vão chegar ao
sacrifício final, uma vez que os peixes já vão mortos e os homens vão mortos de espírito.
Padre António Vieira diz que a irracionalidade, a inconsciência e o instinto dos peixes, são
melhores do que a racionalidade, o livre arbítrio, a consciência, o entendimento e a vontade
do homem.
Conclui-se assim, fazendo um apelo aos ouvintes e louvando-se a Deus, tornando esta última
parte do sermão um pouco mais familiar, para que se estabeleça de novo a proximidade entre
os ouvintes e o orador.

Este sermão teve como ouvintes os colonos do Maranhão e tem grande coesão e coerência 
textual graças à utilização de recursos estilísticos, articuladores do discurso e argumentos de
autoridade e analógicos para validar e confirmar os testemunhos narrados. Todo o sermão é
alegórico, uma vez que são utilizados os peixes como figuras concretas para a crítica aos
homens.
O sermão é,pois, todo ele feito de alegorias, simbolizando os vícios dos colonos do Brasil ("peixes grandes que comem os pequenos") em vários peixes.

O sermão, o texto de que hoje dispomos, é apenas uma das partes que compunham o espetáculo teatral da pregação, onde intervinham outras unidades significativas como o espaço cénico, a iluminação, a marcação, os gestos, as entoações. A própria arquitetura barroca adotou o modelo jesuítico de igreja-salão, sem naves laterais para que o púlpito pudesse ser visto.


O estilo de Padre António Vieira remete para uma vertente medieval que assenta na alegoria, mas também para processos concetistas que o celebraram como um tecelão barroco, cheio de perícia em desfiar os textos bíblicos, para compor um texto novo. No entanto, Padre António Vieira tece este discurso velho, moldando-o às suas ideias, brincando com as palavras.

Para esse desempenho usou:
os polissíndetos;
as comparações;
as anástrofes;
as exclamações;
os trocadilhos;
os paralelismos anafóricos;
as antíteses;
a anáfora;
as gradações;
as interrogações retóricas;
...

O Pe António Vieira é considerado o maior orador sacro português e domina todo o século XVII pela sua personalidade vigorosa que capta a atenção dos ouvintes.

Destaca-se, ainda, pela coragem evidenciada na luta, através das palavras, contra a exploração dos povos oprimidos e pelo patriotismo evidenciado na luta pela manutenção da independência nacional, numa época instável como foi a da Restauração.

É marcante, também, o seu anticonvencionalismo e ousadia ao combater a organização social e religiosa mais poderosa de Portugal – O Tribunal do Santo Ofício – cujas práticas anti-cristãs denuncia, independentemente dos perigos a que se expôs e do sofrimento que tais atitudes lhe causaram.

 Razão do título do Sermão de Sto António aos Peixes:

O sermão inspira-se na lenda medieval segundo a qual Santo António, numa das pregações destinadas a emendar o comportamento dos homens, decide falar aos peixes ao constatar que os homens não lhe prestam atenção. Compreensivos e atentos, os peixes levantam as cabeças à superfície das águas, comprovando a força da palavra do santo.

António Vieira imitá-lo-á visto que também não é ouvido pelos colonos do Maranhão que exploram os ameríndios e os escravos negros; à semelhança do santo que tanto venera, falará aos “peixes” – alegoria dos colonos. Deste modo pode criticá-los sem temer represálias.

Funções do sermão:

O sermão tem uma missão social (salvar os ameríndios da cobiça e exploração);
 é também um instrumento de intervenção na vida política do país;
tem também uma missão espiritual: divulgar a palavra de Cristo, o Evangelho e histórias de santos como exemplos de condutas a imitar.

 Intencionalidade comunicativa do pregador:

O sermão é um texto que pretende:

a) ensinar através do recurso a citações bíblicas, dados da História natural, exemplos da sabedoria popular. Tem, portanto, uma função informativa (informa sobre diversos saberes)

b) agradar aos ouvintes através do recurso a frases exclamativas, interrogações retóricas, gradações, apóstrofes, alegorias. Tem uma função emotiva (desperta emoções nos ouvintes)

c) Persuadir os ouvintes através da argumentação por meio do confronto com a Bíblia, emprego do modo imperativo, do vocativo e interrogações retóricas. Tem uma função apelativa (interpela os ouvintes, obrigando-os a reflectir no que é dito)

d) intervir na sociedade portuguesa da sua época.