Translate

sábado, 6 de dezembro de 2014

Se eu fosse um peixe... Peixe Mandarim (exemplo)

      Começo por apresentar o meu retrato psicológico e alguns dos meus traços físicos, capazes de compor a minha existência enquanto ser humano.
     “O meu nome é ...; um nome bastante vulgar, mas que contém um grande valor para mim.” …        Poderia continuar a citar pequenas frases do meu autorretrato, mas todos sabemos que essa matéria não interessa aos peixes. Por isso, serei um pouco mais objetiva, dizendo que me observo como uma adolescente dentro dos parâmetros normais, com uma personalidade bastante forte, mas também com alguns defeitos. Como diria o Padre António Vieira, no Sermão de Santo António aos Peixes, “Ou é porque o sal não salga, ou é porque a terra não se deixa salgar”, querendo com isto transmitir a imagem de que o homem tem imensos defeitos que merecem a sua crítica. E de certa maneira, é o que eu mostro perante os vossos olhos, com estas palavras que simbolizam os meus defeitos, tais com a teimosia, impaciência e o perfeccionismo desmedido. Também o querer lutar demasiado por certos direitos, por vezes, leva-me a cometer certos erros, que não considero dignos. Mas se o meu ser apenas contemplasse defeitos, jamais me poderia comparar a um peixe, para conseguir alguns dos louvores que também o padre lhes apontou, criticando a não existência dos mesmos nos homens. E por essa razão, digo-vos de igual modo, certas qualidades que na minha opinião, também merecem simples louvores. Perguntais quais são? Então, acho que sou uma pessoa bastante persistente que nunca desiste dos seus objetivos, colocando muitas vezes a coragem à frente do caminho que percorro nesta vida, onde é constantemente necessário saber ultrapassar determinados obstáculos. Sou um ser sincero e honesto, simpático e amigável, e também um bom ouvinte.
     Posto isto, chamo à descrição o Peixe-Mandarim. E podereis questionar o porquê desta analogia… mas tal resposta mostrarei já de seguida, com a análise das suas características gerais.
     Começando por comparar a sua adaptação ao clima tropical e a meios de água salgada. Eu também me considero uma pessoa que se adapta facilmente a qualquer grupo de amigos, pois sou extrovertida e capaz de me relacionar em ambientes onde exista variedade de personalidades. Ambos somos pequenos, sendo ele mais do que eu (mede cerca de seis a dez centímetros de comprimento). Claro que também temos diferenças que existem no facto de ele viver escondido em fendas nos recifes de coral e alimentar-se de pequenos animais marinhos que passam próximos do seu esconderijo conseguindo apenas conviver com indivíduos da mesma espécie.
     Nesse aspeto, acho que somos bastante diferentes, dado que eu não consigo viver isolado e sem convívio com pessoas que diferem nas suas personalidades. Mas pronto, existem outros traços que têm uma certa parecença tal como a sua timidez e exuberância (embora a minha não seja tão elevada).
     Este peixe apresenta um revestimento onde não habitam escamas, isto é, possui uma pele suficientemente grossa, capaz de o proteger de todos os perigos, tais como pontas agudas presentes nos recifes de coral. Também possui cores bastante fortes, brilhantes e apelativas, que constroem um mecanismo de auto defesa em relação aos predadores. Este mecanismo completa-se com os seus longos espinhos das costas que, ao menor sinal de perigo, são eriçados fazendo-o parecer maior do que realmente é.
     É estranho pensar acerca da presença de uma possível analogia, mas vejamos: eu sou um pouco tímida em certas circunstâncias, mas quando o perigo espreita, eu enfrento-o com toda a coragem e defendo a minha posição em todos os sentidos. Em relação à sua pele grossa que o protege de certos perigos, também o meu caráter é suficientemente forte e capaz de sobreviver a quase todos os perigos e maldades que me são apresentados.
     Também este peixe tem uma característica que o faz estar em permanente alerta em relação aos predadores do seu meio: os seus olhos projetados para fora como grandes saliências. Tal como os meus, que também estão em constante alerta, tendo em conta não só os perigos mas também todas as emoções que com eles consigo transmitir. Existe ainda uma particularidade neles: o facto de não possuírem pálpebras nem canais lacrimais, a água salgada é a responsável pela limpeza dos seus olhos. No que diz respeito a este assunto, acho que existe uma certa comparação tendo por base o facto de todo o ser humano aprender com os seus erros e, tal correção se realizar somente quando os nossos próprios olhos enxergam a realidade e percebem que algo não está correto e é necessário mudar, isto é, limpar a mente de todos os defeitos apresentados, e procurar uma nova resposta na realidade instituída.
     E pronto, não somos almas gémeas, mas continuo com a ideia de que “Se eu fosse um peixe… seria o Peixe-Mandarim”!





Padre António Vieira


O padre António Vieira é um expoente da língua portuguesa do qual, várias vezes, se tentou reunir toda a vasta obra. Esta, finalmente, está disponível, cumprindo-se assim o objetivo primeiro da equipa internacional de 52 peritos liderada por José Eduardo Franco e Pedro Calafate. "Esta coleção destina-se ao grande público", dizia José Eduardo Franco, quando se começou a publicar a obra de Vieira em abril do ano passado. "O nosso maior objetivo é democratizar o Padre António Vieira, cujos textos devem poder chegar a toda a gente." São trinta volumes, quinze mil páginas em que podemos contactar de novo com o pensamento e o vigor da linguagem do sacerdote, do missionário, do pregador régio, do diplomata e, sobretudo, o defensor dos oprimidos. O "padre António Vieira era um universalista que, além de nos ensinar a tolerância e a inclusão, lutou contra a segregação e a opressão", sublinhou José Eduardo Franco na apresentação da obra. Denunciou as injustiças do seu tempo, lutando pela abolição da escravatura sem se acobardar diante dos poderosos que enriqueciam à sua custa. Atreveu-se mesmo a afrontar a Inquisição, acusando-a de sufocar o país pelo medo – e só escapou às suas garras graças à proteção de D. João IV. Após o falecimento do rei, valeu-lhe o Papa, de quem conseguiu a anulação da sentença da Inquisição que o tinha condenado em 1967 e lhe concedeu a imunidade perante qualquer tribunal, ficando apenas dependente do Tribunal Romano. Apesar de muitas das iniquidades denunciadas pelo padre António Vieira se terem entretanto mitigado, as suas palavras continuam, infelizmente, atuais. Ontem como hoje, o peixe graúdo continua a alimentar-se do miúdo, com a complacência e insensibilidade da generalidade das pessoas. Os príncipes, "em vez de guardarem os povos como pastores", continuam a roubá-los "como lobos", mantendo-se atualíssimas as palavras do Sermão do Bom Ladrão, proferido em 1655 na Igreja da Misericórdia, em Lisboa. Quase quatrocentos anos depois, é um outro jesuíta que nos nossos dias ergue a sua voz para defender os oprimidos e explorados do nosso tempo: o Papa Francisco. Ambos são vozes incómodas que muitos tentam silenciar. Mas a sua obra permanecerá.

FERNANDO CALADO RODRIGUES