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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Morreu Cesário Verde



















            



 O DIA EM QUE CESÁRIO VERDE MORREU

 Em 1886, Lisboa era uma cidade muito diferente do que tinha sido trinta anos antes.  A sua população, 300 000 habitantes, tinha dobrado.  Do campo, haviam chegado milhares, os homens primeiro, para trabalhar como estivadores ou pedreiros, a família depois.  Em parte devido à pressão dos recém-chegados, em parte porque o alargamento dos limites urbanos era uma forma de obter novas receitas para o Estado, a cidade alastrara.
Ao lado de uma indústria incipiente, visível sobretudo para os lados de Xabregas e Alcântara, a cintura saloia espraiava-se por todo o lado, Mafra, Benfica, Lumiar.  Os laços ao campo permaneciam fortes.  A infância rural deixava saudades que não desapareciam facilmente.
 Com os seus espaços apertados e o tempo normalizado, a cidade parecia asfixiante aos novos habitantes.  Não surpreende pois que, nos quentes dias de Verão, o povo deixasse a capital, com cestos repletos de talhadas de melão, damascos e pão-de-ló, a caminho das hortas.  Para os que ficavam, havia os bailes "campestres", sob as parreirinhas dos cafés e das sociedades recreativas, além da música ao ar livre nos coretos pintados de fresco.
 No dia 18 de Julho de 1886, um domingo, não faltavam distrações.  No Beco das Olarias, o "baile campestre" era acompanhado por uma banda tocando um "variadíssimo repertório"; na sociedade Recreio Operário, na Rua dos Remédios, à Lapa, a banda "abrilhantava" o baile proletário: na Nova Rossini, na Rua do Sol, ao Rato, entre o bazar e o lanche, a filarmónica dos Alunos de Guilherme Cossoul deliciava os ouvintes pequenos-burgueses.
Nos Jardins da Estrela, de S. Pedro de Alcântara e no Largo de Belém, entre as 5 e as 7 da tarde, os domingueiros podiam ouvir belos concertos ao ar livre.  De entre as solicitações do dia, a mais popular era certamente a tourada que, nessa tarde, se realizaria no Campo de Santana, e na qual tomavam parte os irmãos Roberto e o conhecido cavaleiro Alfredo Tinoco.  Os espectáculos nocturnos também eram aliciantes.  Na Esplanada dos Recreios, poder-se-ia ver um bruxo que fazia truques de prestidigitação ou, no Teatro Chalet, a peça O Duque de Vizela.

Em 1886, já tinham sido introduzidos em Lisboa algumas das inovações que facilitavam a vida urbana: em 1848, tinham aparecido os primeiros candeeiros a gás e, em 1878, haviam sido instalados, no Chiado, seis candeeiros eléctricos.  Não se pense contudo que esses melhoramentos se propagaram rapidamente.  Grande parte das ruas da cidade eram de terra, malcheirosas e escuras.  A muitas das suas vielas e escadinhas a civilização não chegara.
 A 18 de Julho, um grupo de habitantes de Alfama pedia insistentemente à Câmara de Lisboa que mandasse regar as ruas do bairro, pois o vento estava a levantar enormes ondas de poeira, que invadiam casas e lojas.
Nos bairros antigos, a higiene era deplorável.  Com traseiras, pátios e quintais apinhados de galinhas, coelhos e porcos, as casas estavam infestadas de parasitas.  Apesar de a recente captação do rio Alviela ter permitido instalar uma rede de distribuição de água a domicílio, o benefício chegava a poucas casas.
Nos mercados, as condições sanitárias eram péssimas, fazendo com que muitos dos géneros consumidos pelas classes populares estivessem estragados.  Os fiscais tentavam pôr cobro à situação, mas não chegavam para as encomendas.  No mercado central, a 17 de Julho, tinham sido inutilizados, como impróprios para consumo, 81 pescadas, 76 peixe-espadas e l 200 carapaus: era uma gota no oceano,
Com os seus pregões e cheiros, gritos e correrias, a vida nestes bairros era animada.  Até certo ponto, o bairro reproduzia a aldeia originária, com as suas redes de lealdades e rivalidades.  Muita gente nascia e morria ali, sem ter saído dos seus limites estreitos: era ali que trabalhava, namorava e se zangava.  Como em todos os universos fechados, as brigas eram frequentes, assumindo por vezes um carácter violento.
A l 8 de Julho, um casal da Mouraria fora atacado, na cama, por uma vizinha que brandindo um garfo os feriu de tal forma que tiveram de ser conduzidos ao Hospital de S. José.  Um pouco acima, António Martins socava barbaramente a sua amante Maria Engrácia; noutro ponto da cidade, o padeiro José Dias da Silva era preso por arremessar à amante, Ana de Jesus, uma bilha que lhe despedaçou a cara.  Certas zonas da cidade, depois do sol posto, Alfama, a Mouraria ou o Bairro Alto, eram particularmente perigosas.  O policiamento era ineficaz.  Só os criminosos mais azarentos, como o Bexiga, acabavam presos.
O povo de Lisboa era uma amálgama muito particular.  Juntava gente variada, do operário fabril ao descarregador, da criada ao artesão, do pequeno funcionário ao caixeiro, Formavam a massa dos "pequenos", da "ralé", da "canalha", que ganhava o pão com o suor do seu rosto.  Se entre o pequeno lojista e o operário havia um mundo de diferenças, estas tendiam a esbater-se quando os poderosos entravam em cena.  Era contra os da "alta" que os "pequenos" se definiam.

Cidade portuária, a zona ribeirinha era uma das mais activas de Lisboa.  Pelas docas de Alcântara lhe chegava o carvão que consumia nas suas fábricas; pela de Santos, as mercadorias coloniais; pela do Cais do Sodré, os melões e o vinho de Almeirim, o trigo do Alentejo, as melancias de Setúbal, o peixe que abastecia a cidade.  Fragateiros, varinas e descarregadores povoavam este cenário luminoso e febril.  Todos os dias atracavam grandes navios transatlânticos, despejando e recolhendo mercadorias.  No sábado, o movimento da alfândega fora, como de costume, intenso: para o Maranhâo, seguira, no Bragança, um carregamento de feijão; para Hamburgo, no Davis, l 71 fardos de cortiça; para Liverpool, no Ter, 147 caixas de maçãs, 630 caixas de cebolas e l 7 caixas de tomates; para Bordeaux, no Mokla, 226 caixas de sardinhas.  De Newcastle, a bordo do Catarino Richard, chegara um grande carregamento de carvão.

Os contrastes entre ricos e pobres eram enormes. É verdade que os milionários portugueses eram patéticos quando comparados com os seus parceiros europeus, mas em face da miséria indígena qualquer ser com o mínimo de sensibilidade se chocaria.
No centro da cidade, entre portais e vãos de escada, amontoavam-se cegos, estropiados, crianças abandonadas e velhos paralíticos.  Para muitos, os pobres faziam parte da ordem do Universo, e a injustiça social de que eram vítimas era tão natural como o facto de um sobreiro não ter nascido um pinheiro, como mais tarde escreveria Fernando Pessoa.
 Os miseráveis eram objectos que Deus colocara no caminho dos ricos para que estes pudessem exercer a caridade, nas festas e nos bazares variados, como o que, na véspera, tivera lugar no Passeio da Estrela, durante o qual as senhoras da Lapa leiloaram entre si os despojos oferecidos.
Mas não havia caridade que bastasse para este caudal imenso de costureiras pálidas e tísicas, artesãos desempregados de olhar rebelde, vendedeiras esmagados pelo peso da carga, velhas abandonadas que falavam sozinhas, coxos, cegos e manetas.
Nesse Verão de 1886, os albergues noturnos abarrotavam de gente suja e esfarrapada que, aos milhares, ali ia em busca de uma sopa e de uma enxerga.  Os jornais transmitem os gritos dos que viviam aflições: a Assunção da Glória, viúva, moradora na Trav. de S. João de Deus, apelava ao público para que lhe desse qualquer coisinha, pois não tinha família que lhe valesse; a Amália Vidal, moradora na Rua da Mouraria, pedia a uma alma caridosa que lhe pagasse o quarto escuro donde estava em risco de ser despejada.  Havia outros recursos, mas eram mais arriscados: nesse dia, o marítimo José Maria fora preso, por ter roubado dois gorazes do mercado da 24 de Julho.

Os trabalhadores ganhavam salários irrisórios e estavam sempre à beira do desemprego.  Alimentavam-se, ano após ano, a pão, sopa e batatas, uma ementa insuficiente que ajuda a explicar as altíssimas taxas de mortalidade de Lisboa e do Porto.  As doenças que mais mortes causavam eram a tuberculose pulmonar e as pneumonias.
 Havia quem não aguentasse esperar.Luísa, criada de servir, atirava-se, na tarde de 18 de Julho, de um terceiro andar na Rua do Oiro para a rua após ter sido despedida; o cozinheiro Cândido da Silva lançava-se ao Tejo.

As .condições de trabalho eram atrozes: a duração do dia de trabalho era longuíssima e a segurança nas oficinas inexistente.  Todos os dias se verificavam acidentes: fiandeiras que ficavam sem dedos, pedreiros que caíam de andaimes, vidreiros que arruinavam os pulmões, mineiros que ficavam soterrados.
A 18 de Julho, quando trabalhava na construção de uma linha de caminho-de-ferro. Sebastião Pereira, de 30 anos, fora subitamente esmagado por um penedo que se soltara, enquanto Manuel  caía de uma tábua durante um descarregamento no cais.  Perante este espectáculo, até os mais acérrimos defensores do liberalismo foram forçados a vergar.  A ideia de que o Estado tinha de intervir para proteger os mais fracos foi-se espalhando.

 Quem, a 19  de Julho de 1886, abrisse, de manhã, a janela, perceberia que o dia iria estar quente.  No Norte trovejara, rnas nos arrabaldes da capital, entre as ribeiras e os montes, o clima estava ameno.  Nos pomares, cantavam os pintarroxos, nos prados as vacas leiteiras pastavam pachorrentamente e, entre pedregulhos luzidios, as mulheres saloios preparavam-se para lavar as últimas peças de roupa que, no dia seguinte, teriam de entregar nas casas ricas da capital.  Famílias aperaltadas partiam para a missa dominical.  O silêncio era apenas entrecortado pelas chocas da manada e pelos carros de bois que desciam do outeiro.  Foi no meio deste esplendor que, às 5h. da manhã, com os pulmões destruídos pela tuberculose, "sem querer, aflito e atónito", morreu José Joaquim Cesário Verde.  Tinha 31 anos e vira chegar o fim "como um medonho muro".